Colégio Paulo Freire Jundiaí

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domingo, 19 de setembro de 2010

ARTIGO DO PROF. DR. LINO DE MACEDO

Para um amor florescer

Lino de Macedo
2010


Nos jardins da vida, a planta Amor é da qual mais se fala; talvez por isto mesmo, é a mais difícil de cultivar. É que frequentemente a confundimos com outras plantas e com as ervas daninhas que, toda razão, grassam ao ser redor. Não é assim, por exemplo, com as rosas, que sobressaem aos espinhos que as protegem de nossos toques grosseiros e clamam por nosso olhar de apreciação e encanto, difundindo sua presença aos que estão perto ou longe, com seu cheiro característico e atraente? O que é necessário para um amor florescer? Que distorções podem ocorrer ao longo de sua construção?

Cuidar

Uma das condições para o amor florescer é poder se expressar como cuidado. Cuidar é o mesmo que cogitar, imaginar, pensar. Por extensão, significa tratar de, dar a atenção a; quer dizer também ter cuidado com a saúde, curar. Daí que o amante é cuidadoso com os objetos de seu amor. Qual jardineiro dedicado, ele alimenta seu jardim com tudo o que necessita, o protege dos muitos ataques a que está sujeito, defende, afasta, o que pode prejudicar, aproxima, valoriza o que pode beneficiar. Não são assim muitas mães e pais em relação aos seus filhos? Em seus sonhos, zelam para que possam se orientar, trilhar o caminho que vislumbram para eles. Em suas práticas ou cuidados estão atentos ao que necessitam, ao que lhes faz bem. É que amor, vida e conhecimento são pura fragilidade, pois sobrevivem da qualidade sutil e complexa das relações que entretecem com todas as outras coisas no jardim de suas existências. O amor, por exemplo, há sempre de se haver com a raiva, o ódio, a impaciência, a desatenção. A vida, com as coisas que a prejudica, que a abrevia ou adoece. O conhecimento, com a ignorância, o medo ao desconhecido, a ausência, a preguiça, a indiferença.
O amor como cuidado, às vezes pode nos enganar. Quem cuida, cuida, ou quer ser cuidado naquilo que sonhava ou queria? O que faz uma mãe decepcionada porque o filho que nasceu, não tem o gênero sexual que desejava? Se é irritável e não a deixa descansar ou trabalhar em seus outros trabalhos? Como amar os filhos que fazem o que não gostaríamos que fizessem, que são diferentes, têm doenças ou síndromes difíceis de serem tratadas? Por que cuidar de quem nos perturba, prejudica nossos interesses ou intenções, não nos deixa dormir? Cuidamos deles por amor ou obrigação? Pelas exigências da lei, do dinheiro que isto nos traz, ou pelo respeito e carinho por suas vidas, sabendo-as frágeis e nem sempre favoráveis ao que gostaríamos que fossem? E se eles ficam doentes, morrem, fracassam na escola, na vida: cuidamos, culpando? Cuidamos, com vergonha? Cuidamos, com desesperança? Como perdoar ou compreender um filho que morreu, que se afastou tão cedo de nós, que nos impediu de continuar cuidando dele?

Importar-se por

Nos jardins da vida, do amor e do conhecimento o segundo passo no caminho de seu cultivo amoroso é o importar-se por alguém ou alguma coisa. Quem se importa, observa; quem observa, age. É que observar significa proteger e guardar. E proteger e guardar são ações de cuidado, que revelam importância. Segundo Whitaker Salles (2002), “a idéia mais forte de proteção, no inconsciente coletivo, é justamente a dos pais a observar os filhos” (p. 167). Conservar (“manter o que deve ser protegido”), preservar (“prevenir”) e observar (“prestar atenção”, “vigiar”) são ações de cuidado que expressam amor, interesse, valia.
Importar, segundo Viaro (2003, p. 180) quer dizer “carregar para dentro”, “fazer vir de outro lugar”. Daí que o importante “deve ser trazido para dentro”. Dizer que algo é importante significa, pois assumir que ele tem valor para nós, que vale nosso sacrifício, como é próprio às coisas sagradas. E o amor é algo sagrado, nos ensinam as religiões, os filósofos, os cientistas. Querer ter um filho biológico leva uma mulher a gestá-lo dentro de si. Querer ter um filho psicológico leva uma mãe a trazê-lo para dentro, pois seu amor significa observar, cuidar, importar por ele, ele que é agora um outrem de si mesma.
O amor significando importar-se por, também apresenta suas distorções. E estas talvez sejam mais difíceis de observar ou suportar do que as trapaças do cuidado. Nos importamos ou queremos ser importantes? Um pai, professor ou mãe se julgam importantes para seus filhos ou alunos ou se importam por eles? As rosas do jardim são uma homenagem ao jardineiro? São elas que roubam o perfume de nossos cuidados e valores, ou nós que estamos a serviço dele, através delas, que o possuem? Em quem prestamos atenção: aos que se importam ou ao que é importante? O que vale mais: quem traz ou carrega para dentro, ou o que é trazido ou transportado para dentro de nós e, por isto, se tornou uma parte de nós? Quem se julga importante se autoriza a cobrar, controlar, reclamar, possuir, descartar. Quem se importa, ama, traz para dentro, transforma-se em razão do outro. Queremos, suportamos isto?

Compartilhar

O terceiro passo nos caminhos do amor é o saber e querer compartilhar. Compartilhar vem de partir, “dividir em partes”, “proceder”, “ir embora”. Se aprender a cuidar e se importar por (alguém ou alguma coisa) são difíceis, o que dirá saber compartilhar? A mãe compartilha com o pai o mesmo filho. Este sendo um todo, deixa-se, por amor, se dividir por eles. Sente-se dos dois, quer os dois, se possível para sempre. E quando os filhos vão embora de casa, vão para a escola, vão para a vida, na mãe este “vão” está feliz porque pensa que compartilhar faz bem para eles, é seu direito e necessidade. Ela intui que ao partilhar, não perde, pois ganha na volta o perfume das rosas que seu filho encontrou nos outros jardins. Ela intui que mãe (família), professora (escola) e cidade ou comunidade são parceiros de um objetivo comum: cuidar e se importar pelo que vale a pena. O amor, neste nível, partilha, deixa ir embora, porque não teme perder o que ficou, nem se prejudicar pelo que será trazido de volta, pelo que vai influenciar. Ela intui que a complexidade da educação supõe muitas pessoas e coisas ao serviço, cheio de cuidados e importância, do que é frágil, transitório, apesar de valioso. Não são assim a vida, o amor e o conhecimento? Como compartilhar com eles, os seus contrários - morte, ódio e ignorância - sabendo-os parte de um mesmo todo?
Os descaminhos do compartilhar são mais fáceis de acontecer que os do se importar e cuidar. Quantas vezes, aliás, invocamos o cuidar e o se importar como “razões” para não compartilhar? Quantas vezes não compartilhamos ou compartilhamos pouco, por medo de perder, por causa dos ciúmes, da inveja, da raiva, do ressentimento, da chantagem, da vingança? Quantas vezes, uma mãe compete com a professora, temendo que o filho de casa valha menos do que o mesmo aluno na escola? Ela suporta saber que “eles” - aluno e filho - são partes da mesma criança e que esta criança não é da mãe, nem da professora, não é propriedade delas, apesar dos cuidados e da importância que lhe atribuem? Quantas vezes deixamos de colaborar, de ajuntar forças, por que não sabemos dividir, não sabemos deixar partir, inseguros de que sua volta possa não acontecer, esquecidos de quem talvez retornem melhores do que eram? O que dizer dos amantes e seus sentimentos de exclusividade e posse? O que dizer dos colegas e sua indisponibilidade ou desinteresse pelo que lhes é comum? O fato é que nossa forma de compartilhar, muitas vezes, assume a forma de competir, ignorantes de que competir, não é comparar e perder, mas é “lançar-se (muitos) na mesma direção” (p. 180).

Cooperar

Chegamos ao último estágio ou passo no caminho do amor. É o mais difícil, o mais valioso. Cooperar é fazer coisas junto em torno ou em nome de algo maior. Na cooperação compartilhamos em favor de algo além de nós. Não é isso que fazem os pais em seu projeto de criar e educar seus filhos? Não é isso que faz uma comunidade científica ou grupo de pesquisadores em seus compromissos de conhecer ou produzir algo que seja benéfico para todos, que possa ser justificado socialmente, que possa valer eticamente? Cooperar supõe autonomia, respeito mútuo, reciprocidade, responsabilidade, liberdade, trabalho em grupo. O que justifica a cooperação é o amor que atribuímos não ao outro ou a nós mesmos, mas àquilo que juntos estamos fazendo. É nele que nos perdemos e é através dele que nos reencontramos, quem sabe melhor, quem sabe mais conscientes de seu valor. O princípio da cooperação é o amor (ao conhecimento, à vida, ao que vale a pena ser realizado), mas o trabalho conjunto, a disciplina ética, a paciência, o esforço, a concentração são os procedimentos que tornam possível realizar ou compreender aquilo que diz amar.
Cooperar pode se revestir de muitos embustes. Não é assim, também, com o amor? Em nome dele, quantas coisas já fizemos, quantas coisas já nos fizeram? Pais dizem amar seus filhos, mas se recusam a cooperar em favor deles, porque o projeto “continuar casados” fracassou. Por que cooperar se nos sentimentos enganados, traídos? Como cooperar se mal e mal conseguimos cuidar de nós mesmos? Se não aceitamos perder, se não queremos arriscar? Quantas vezes em nome da cooperação, justificamos a rigidez, a submissão, a renúncia ao que é diferente? Quantas vezes, em nome da “diferença” ou da “liberdade” justificamos o não se entregar ou dedicar ao que, através de nós, está além de nós?

No jardim da vida e do conhecimento, o amor não morre. As pessoas, que amam, morrem. Mas, se, de fato amaram, terão distribuído ao longo de sua vida seu legado amoroso, que se expressou como sementes plantadas nas pessoas e coisas que fizeram de sua vida. Daí que a morte dos que amamos não destrói nosso amor por eles, pois agora faz parte de nossa saudade, é parâmetro de nossas vidas, pois fomos deles beneficiário.

O amor é silencioso. Ele se manifesta como cuidado, dar importância, compartilhar e cooperar, ou seja, como atividade que cria vínculos, tece relações, realiza projetos. O amor não é apenas um observável, algo sobre o qual se fala, mas uma forma de coordenação, uma qualidade de criar nexos entre nós e os outros, nós e todas as coisas. Quem busca o amor pode não encontrá-lo, ou o encontrando, nem reconhecê-lo. Por ser uma prática, ele já está em nós, esperando por nós. Mas, só o descobrimos através dos outros, do que fazemos para eles ou em seu nome. Não é assim também com as rosas? O perfume é delas ou de todas as coisas interdependentes que o tornaram possível? O perfume é delas ou do jardineiro que as cultivou, também para nós?

Notas bibliográficas

1. Sem qualquer compromisso de fidelidade ao conteúdo, devo a “inspiração” deste texto ao que Stanley Kelerman escreveu em “Amor e vínculos: Uma visão somático-emocional”, especialmente no capítulo, “Os estágios do amor” (São Paulo: Summus, 1994).
2. Vali-me, também, das idéias de Jean Piaget, especialmente em seu livro “Sobre a Pedagogia” (São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998), quando ele analisa o valor da autonomia, da cooperação, do trabalho em grupo e do self-government em nossos processos de desenvolvimento.
3. Os que me conhecem sabem o quanto sou grato aos dicionaristas, pelo que me ajudam a pensar sobre a história e a sabedoria das palavras. Na escrita deste texto recorri aos seguintes dicionários:
a. Cunha, A. G. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1982
b. Silva, D. De onde vêm as palavras: Origens e curiosidades da Língua Portuguesa. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.
c. Viaro, M. E. Por trás das palavras: Manual de etimologia do Português. São Paulo: Globo, 2004.
d. Whitaker Salles, M. F. Dentro do dentro: Os nomes das coisas. São Paulo: Mercuryo, 2002.

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